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29 de jul. de 2013

"Quem que seja tu"


Quem quer que sejas tu, que neste abrigo
Vieste em hora mansa hoje parar.
Feliz! Vens encontrar aqui contigo
Os tesouros que andaste a procurar.

Vens encontrar, sob o silêncio amigo,
A paz do ouvido, e a glória do olhar.
E até, quem sabe? Aquele beijo antigo
que há muito tempo não sabias dar.

Vens encontrar, ( é tarde? Não importa),
Um bem que passou à tua porta.
Um grande amor, nem tu soubeste a quem.

E vens, ( tanta riqueza em toda a parte),
Vens a ti mesmo, atónito, encontrar-te.
Ès um poeta, e nunca o viste bem.

Joaquim Nunes Claro
de 'Cinza das Horas'

[Tela do pintor brasileiro Washington Maguetas]

''Partiste, e a serra idílica do vento''



Partiste, e a serra idílica do vento,
do mar, das névoas, mais das grandes luas,
manda dizer-te, amor, neste momento,
que. ficou triste, com saudades tuas.

E que, no inverno, enquanto o céu cinzento
tremer nos ramos e chorar nas ruas,
vestirá, com teu lindo pensamento,
as pedras pobres e as roseiras nuas.

E diz mais - que em abril, quando aí saias,
penses, ao ver florir perto as olaias,
naqueles que deixaste sem ninguém.

no sol, nas ervas, no luar, na altura.
- Só não te diz, porque é de pedra dura,
que tu penses, um pouco, em mim também!


Nunes Claro
de 'Cinza das horas'

''Vieste Tarde''



Vieste tarde, meu amor! Começa
Em mim caindo a neve devagar,
Morre o sol, o Outono cai depressa,
E o Inverno, finalmente, há-de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
De caminharmos toda a vida a par,
Daqui a pouco o teu amor tem pressa
E o meu, daqui a pouco, há-de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
Dando um ao outro só palavras mortas,
Que rolam mudas pelas nossas vidas,

Ouviremos, nas noites desoladas,
- Tu a canção das vozes desejadas,
Eu, o chorar das vozes esquecidas!

Joaquim Nunes Claro

de 'Cinza das horas"
(Lisboa, 20 de Abril de 1878 — Sintra, 4 de Maio de 1949, médico e escritor português)

''Pobres Rosas De Sintra''





Toma essas rosas de Dezembro, agora,
Que ao frio, à chuva, esta manhã colhi,
Elas trazem humildes, lá de fora,
Saudades da montanha até aqui.

Hão de morrer d’aqui a pouco, embora!
Em cada curva onde o perfume ri,
Trazem mais o terno duma hora,
Que um frágil coração bateu em ti.

Aceita-as pois, mas, como a vida é breve
E, um dia, perto, leve e branca a neve,
Há-de cair sobre o teu peito em flor,

(Não vá Dezembro algum murchar-te o encanto)
Deixa tu que eu te colha agora, enquanto
Tens sol, tens mocidade e tens amor.


Nunes Claro
De "Cinza das Horas"

27 de jul. de 2013

VENDAVAL



        VENDAVAL

        Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
        Não achas, soprando por tanta solidão,
        Deserto, penhasco, coval mais vazio
        Que o meu coração!

        Indômita praia, que a raiva do oceano
        Faz louco lugar, caverna sem fim,
        Não são tão deixados do alegre e do humano
        Como a alma que há em mim!

        Mas dura planície, praia atra em fereza,
        Só têm a tristeza que a gente lhes vê
        E nisto que em mim é vácuo e tristeza
        É o visto o que vê.

        Ah, mágoa de ter consciência da vida!
        Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
        Que rasgas os robles - teu pulso divida
        Minh'alma do mundo!

        Ah, se, como levas as folhas e a areia,
        A alma que tenho pudesses levar -
        Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
        De eu ter que pensar!

        Abismo da noite, da chuva, do vento,
        Mar torvo do caos que parece volver -
        Porque é que não entras no meu pensamento
        Para ele morrer?

        Horror de ser sempre com vida a consciência!
        Horror de sentir a alma sempre a pensar!
        Arranca-me, é vento; do chão da existência,
        De ser um lugar!

        E, pela alta noite que fazes mais'scura,
        Pelo caos furioso que crias no mundo,
        Dissolve em areia esta minha amargura,
        Meu tédio profundo.

        E contra as vidraças dos que há que têm lares,
        Telhados daqueles que têm razão,
        Atira, já pária desfeito dos ares,
        O meu coração!

        Meu coração triste, meu coração ermo,
        Tornado a substância dispersa e negada
        Do vento sem forma, da noite sem termo,
        Do abismo e do nada!

       Fernando Pessoa, 16-2-1920.