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28 de jul. de 2010

'VITA BREVIS'


A vida é breve mas que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
conosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
na borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e o pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.

5/1/1971

Jorge de Sena,
in Poesia-III, Edições 70, pp. 139-140, Agosto de 1989.

24 de jul. de 2010

"O passado acende reminiscências"


O passado acende reminiscências
como reflexos de sol num lago inerte,
uma lâmina de frio ao soar das brumas
onde a luz se escoa sobre a terra chã.

É a tarde a assomar os restos da tarde
a submergir as evocações derradeiras
de sal e cinza sobre o eco das sombras
num grande desassossego de memórias.

Prosseguimos preservando o seu amparo
à beira das palavras ainda vivas na memória
e os nossos passos seguem no chão dizendo
o clamor da terra a reclamar seu pão.

Vieira Calado

23 de jul. de 2010

***


E se o vento varrer as folhas secas sem deixar
nenhuma?

Este Outono ela não guardará folhas dentro dos livros
E ele não escreverá mais poemas a falar da sua morte
E ambos serão obrigados a não sair do Verão, mesmo

no Inverno, à chuva, atrás dos vidros.


*António Barahona
Noite do Meu Inverno
Lisboa, 2001

*(António Manuel Baptista Barahona da Fonseca (ou Muhammad Abdur Rashid Barahona) 7-1-1939, Lisboa)

17 de jul. de 2010

'Tal a Vida'


Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —


Casimiro de Brito,
in "Negação da Morte"

15 de jul. de 2010

"Coragem"


É preciso arranjar outros
motivos
outras flores e astros

Outras abertas

Entre a chuva cansada de um Outono
que não sabe já
qual é a terra certa

É preciso pensar outras imagens
outras fissuras, sítios
e cidades

Pôr fim ao lamento deste vento
tentar tirar ao anjo
a túnica e o sabre

É preciso inventar outras paisagens
outros montes e águas
outras margens

Abrir e expor o coração
e finalmente deixar
correr as lágrimas


Maria Teresa Horta,
In ‘ Destino'

9 de jul. de 2010

Epígrafe


Murmúrio de água na clepsidra gotejante
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...


Eugénio de Castro