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25 de nov. de 2009

'É pela tarde, quando a luz esmorece'



É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colméias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.

Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.

Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.

Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.

Reinaldo Ferreira
In ‘Um voo cego a nada’

24 de nov. de 2009

Primavera



As heras de outras eras água pedra
E passa devagar memória antiga
Com brisa madressilva e primavera
E o desejo da jovem noite nua
Música passando pelas veias
E a sombra da folhagem nas paredes
Descalço o passo sobre os musgos verdes
E a noite transparente e distraída
Com seu sabor de rosa densa e breve
Onde me lembro amor de ter morrido
- Sangue feroz do tempo possuído

Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)

Meio da vida


(Photographer: Vitaly Pussa)

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra

A casa compõe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida


Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)

'INSTANTE'



Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)

11 de nov. de 2009

DA VOZ DAS COISAS



Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


Fiama Hasse Pais Brandão

10 de nov. de 2009

Somos Poesia



outrora foi contemplado
o momento para o qual fomos criados.

exultando,
correntes cósmicas reúnem-se
para o semear de cometas dourados.

tempos conjugam-se na linha em amor
e o azul amplia o horizonte,
onde safiras transparentes compõem as lágrimas das estrelas.

as constantes partiram em paz
e todos os corpos celestes rejubilam em silencio.

na pirâmide mística da evolução
o altar, decorado com pérolas flamejantes,
aguarda o consagrar dos votos.

Beijo em teu coração.
A noite virá mais serena.

Beijo em teu imenso ser.
O sol trará outro dia.

somos poesia dos deuses,
verbo da Luz.

jamais seremos sós!


Vicente Ferreira da Silva

POEMA AO MEU ESPAÇO



Cerca-me o espaço que não vejo
a curvatura relativista
de meus olhos, o horizonte
que entra a fundo no meu corpo,
a claridade das formas
que se incendeiam.

O meu espaço foge
aos tensores de Riemanm
alarga-se a alaga-se
num lago próximo.

Desconhece as leis da física,
permanece à luz
e pertence aos artifícios da luz,
como silhueta duma árvore
respirando a interior volúpia
das águas móveis.

Vieira Calado

6 de nov. de 2009

Imagem



No firme azul do desdobrado céu
Decantarei a mínima magia
Das sensações mais puras, melodia
Da minha infância, onde era apenas Eu.

Da realidade nua desce um véu
Que, já sem mar, apenas maresia,
me vem tecer aquela chuva fria,
Que prende esta janela ao claro céu.

Despido o ouropel desvalioso,
Já não apenas servo, mas o Rei
Da luz da minha lâmpada nomeia,

Assim procuro o centro misterioso
Do mundo que hoje habito, onde serei
Concêntrica expressão da vida inteira.


Alberto de Lacerda