Seja bem-vindo. Hoje é

28 de jun. de 2009

Eternamente



E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastamos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes, construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas do céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite, abobadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitetos e até teias de aranha suspensas no teto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, contemplamos-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te como tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste.
E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais noturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhamos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes paramos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhamos o céu e interrogamos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu pra sempre.


Conto extraído do livro “Não te deixarei morrer, David Crocket” de
Miguel Sousa Tavares

"Eu vinha para a vida, e deram-me dias"



Eu vinha para a vida, e deram-me dias
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.



Fiama Hasse Pais Brandão
in; Cenas Vivas

Agora que o silêncio é um mar sem ondas



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
e que nele posso navegar sem rumo,
não respondas
às urgentes perguntas
que te fiz.
Deixa-me ser feliz
assim,
já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer enquanto
o nosso amor
durou.
Mas o tempo passou,
há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
matar a sede com água salgada...


Miguel Torga

"A Rosa e o Mar"



Eu gostaria ainda de falar,
Da rosa brava e do mar,
A rosa é tão delicada,
O mar tão impetuoso,
Que não sei como os juntar,
E convidar para o chá,
Na casa breve do poema.
O melhor é não falar,
Sorrir-lhes só da janela.


Eugénio de Andrade,
Obra Poética

Ortografia do olhar



Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante, sem bússola,
enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

27 de jun. de 2009

DA SOLIDÃO



Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
esquecida a tradição e o cansado som.

Dentro e fora de mim tudo é deserto
como se as ervas fossem arrancadas
ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo
para o sonho interior que me resolve!

Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
na mesma angústia que
o silêncio envolve.


Maria Alberta Menéres

26 de jun. de 2009

"Ó sino da minha aldeia"


(Santorini- Grécia)

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


Fernando Pessoa,
in Cancioneiro

'É pela tarde, quando a luz esmorece'



É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colméias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.

Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.

Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.

Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.

Reinaldo Ferreira
In ‘Um voo cego a nada’

'Desde quando alguma vez anoiteceu'



Desde quando alguma vez anoiteceu
E à angústia de que a terra se cobriu
Só pasmo nas esferas respondeu;
Desde quando alguma flor emurcheceu
E a criança que válida se ria
De repente calada apodreceu;
Desde quando a algum estio sucedeu
Um outro outono e a árvore se despiu
E a primeira cabeça encaneceu;
Desde quando alguma coisa que nasceu
Sem que o pedisse, sem remédio se degrada
E acaba, sob a terra que a comeu,
Dispersa entre os átomos dispersos,
Se acumula a tristeza deste dia
E a razão destes versos.

Reinaldo Ferreira
In ‘Um voo cego a nada’

ESTRANHO É O SONO QUE NÃO TE DEVOLVE



Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
de quem já só por dentro se ilumina
e surpreende
e por fora é
apenas peso de ser tarde.Como é
amargo não poder guardar-te
em chão mais próximo do coração.


Daniel Faria

24 de jun. de 2009

Contemplo o Lago Mudo



Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?


Fernando Pessoa
In ‘Cancioneiro’

Sonho. Não sei quem…



Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contem.
Dorme inconsciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa
In ‘Cancioneiro’ (1913)

Ao Longe, Ao Luar



Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa
In ‘Cancioneiro’ (1913)

(Excertos)



"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."

Bernardo Soares
In ‘O livro do desassossego’

"Paisagem de chuva"


Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia liquida me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade - aquela hora parecia que também indefinidamente.
Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.
O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejou por debaixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia. de quando em quando, uma porta de escada. As vezes havia um chapinhar liquido de passos, um roçar por si mesmos de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacavam.

Depois, o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto á janela, eu só a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que ia sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passam a ter lugar e dor na minha desolação.


Bernardo Soares
in: O livro do desassossego.

VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA



Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.

Fernando Pessoa

22 de jun. de 2009

O sonho é a ponte...


O sonho é a ponte
Que vai do infinito ao infinito,
É a medida sem comparação,
É a presença do que se imagina.

Sonhar talvez só seja
Reconhecer o que já nem a alma sinta
Nem o próprio pensamento veja.

Ana Hatherly
In Um Ritmo Perdido

A matéria das palavras



Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriagues de luto em nossos atos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

Ana Hatherly
O Pavão Negro, 2003

Há Palavras Que Nos Beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes

Alexandre O'Neill,

AMIGO


Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!

"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada!

"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
É um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill,
In ‘No Reino da Dinamarca’

Ao rosto vulgar dos dias...


Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.


Alexandre O´Neill
In ‘Poesias Completas’

Caminho


Tenho sonhos cruéis; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta de harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu de agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Camilo Pessanha
In Clepsidra

Apelo


Quem quer que sejas, vem a mim apenas
De noite, quando as rosas adormecem!

Vem quando a treva alonga as mãos morenas
E quando as aves de voar se esquecem.

Vem a mim quando, até nos pesadelos,
O amor tenha a beleza da mentira.

Vem quando o vento acorda em meus cabelos,
Como em folhagem que, ávida, respira...

Vem como a sombra, quando a estrada é nua,
Num risco de asa, vem, serenamente!

Como as estrelas, quando não há Lua
Ou como os peixes, quando não há gente...

Pedro Homem de Mello

19 de jun. de 2009

Somos de natureza contrária



Somos de natureza contrária.
Um de nós pode destruir o outro,
mas só por fora, uma onda que vem
de muito longe, demora a chegar
à praia, ao sol que sossobra
no lugar onde nós estamos,
entregues, entristecidos. Dentro,
no interstício de silêncio
ameaçado pela despedida, sempre
de despedida ameaçado, nenhum
de nós será destruído nunca,
a memória da rua com plátanos,
o pólen mordente da primavera,
o cântico dos pardais. Não,
eu não quero esse amor indeciso
que sossobra num frio inebriante:
cada um com o outro tenta conservar
o seu ser, a identidade que sorri
na janela do quarto que fica por fechar.


Joaquim Manuel Magalhães
In: Uma luz com um toldo vermelho, 1989

18 de jun. de 2009

Ronda


Na dança dos dias
meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...

Na dança dos dias
meus dedos cansaram...

Na dança dos meses
meus olhos choraram
Na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!

Na dança dos meses
meus olhos cansaram...

Na dança do tempo,
quem não se cansou?!

Oh! dança dos dias
oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...

Dizei-me, dizei-me,
até quando? até quando?

Alda Lara

17 de jun. de 2009

TESTAMENTO



À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Alda Lara

QUADRAS DA MINHA SOLIDÃO




Fica longe o sol que vi,
aquecer meu corpo outrora...
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora...

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir,
rumo ao sol do meu país...

Por isso as asas dormentes,
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes,
não podem voar mais eu...

que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor...
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?...
Saudade?...Amor?...Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer...

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono...
passam as horas esguias,
levando o meu abandono...

Alda Lara

ESPELHO



Olho diante do espelho e nada vejo,
Lutei, chorei e sobrevivi,
Para chegar a lugar algum.

Acreditei que poderia mover montanhas,
Superar o impossível e ser meu próprio herói.
Mas nesta vida que a tudo contamina,
Nem mesmo a mais pura das almas sobreviveria.

Aquela criança que salvaria o mundo, sucumbiu à realidade.
Gritando com a alma sem que ninguém ouvisse,
Talvez porque o mundo seja surdo, ou talvez eu.

Tantas vezes quis fugir sem saber para onde,
Mas acabei por me iludir acreditando que tudo poderia mudar.

Caído diante deste espelho sem reflexo,
Aguardo o descanso do qual tanto medo tenho.
Quem sabe por acreditar que tudo possa recomeçar,
E como criança, eu mais uma vez possa sonhar.

Alberto Leal

POEMA PARA HABITAR



A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.

Albano Martins

TODO O TEMPO É DE POESIA



Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.

Antonio Gedeão

NO SOL



Irás achar que foi um erro e foi
um erro, que nada se passou
e na verdade nada acontece nunca
de verdade: a verdade seria

eterna e o acontecido pertence
aos eclipses do tempo precipícios
em que depois da morte ficam vivos,
como se o não estivessem, os momentos

caídos;
foi isso um erro porque nada existe
nem nós, já ao império das vagas
submetidos,

porém na praia oblíqua onde estivemos
permanecer no sol foi tudo o que quisemos

Gastão Cruz,
In A Moeda do Tempo

O QUE FEZ SENTIDO



Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido

Gastão Cruz

'O Mar é Longe, mas Somos Nós o Vento'



O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio passe e a noite aceita.

Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?

Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.


Pedro Tamen
in "Daniel na Cova dos Leões"

1 de jun. de 2009

Outra Madalena


(Paint by Anton Raffael Mengs)

Mede com as mãos o espaço
de uma vida. Não sabe como se chamava,
quando viveu, que idade tinha
quando amou pela primeira vez. É
pura matéria o que tem pela frente,
e o frio do osso entra por ela,
pedindo uma conclusão. Mas
que pode ainda dizer? Nenhuma certeza
nasce do pó; e só um antigo
fogo reveste de saudade
a penumbra que a atormenta,
aquecendo-lhe o coração
onde pulsa o medo do mundo.


Nuno Júdice

'Madalena'


(Paint by Pietro Perugino)

O seu olhar cruza-se com as estrelas
que brilham no interior da caveira cujas
órbitas a refletem. E então, o que pode
acontecer é sentir-se atraída
por esse universo, que a desafia
com o vazio da eternidade. Mas
o vento da tarde vem ao encontro
do seu corpo; e lembra-se do amor,
das conversas, dos rostos que
encheram as suas noites, quando a morte
não fazia parte da sua vida. Por fim,
pega na caveira e enterra-a no canteiro
da sua memória. Talvez uma rosa nasça
de dentro dela; e colherá as suas
pétalas, pensando nas estrelas
em que a eternidade se desfez.


Nuno Júdice

Ao cair da noite



Ao cair da noite
No banco do jardim, como numa sala de espera,
pergunta se alguém virá para a buscar, antes
que a noite chegue. E eu, do outro lado do tempo,
abro o caderno para lhe escrever: «Um dia
saberás o que disseram todas as cartas
que não abriste; e perante o vazio a que
a tua vida se resume, responderás que
pouco importa o tempo, quando a eternidade
te cobriu com a sua noite, há muito.»
Depois, vou ao correio. «Esqueceu-se
de pôr a morada», diz-me o empregado.
«Não sei para quem escrevo», digo-lhe.
E meto na caixa o envelope em branco
para que alguém, um dia, o descubra num
fundo de posta restante. E ao ler o que
lhe escrevi, talvez se sente num banco
de jardim, pouco antes da noite, pensando
no que é a vida em que todo o futuro se
fixa nesse instante que não chegou a ser.

Nuno Júdice

Exercício



Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntou o que significavam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice

Tarde com sol



As coisas simples dizem-se depressa ; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simples murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.
As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêm.

São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras.

Nuno Júdice

CREPUSCULAR



A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

Nuno Júdice

NA SALA



Ouvia-se o barulho do mar à noite.
Talvez não estivesse ninguém na praia (que
poderia alguém estar a fazer, numa praia,
à noite?) - mas
era como se o barulho do mar tivesse, por trás,
as vozes de alguém que contasse uma história
de viagens e de ventos.

Onde se estava bem, no entanto,
era dentro de casa, onde o barulho do mar
parecia trazer as conversas de alguém,
na praia, com o vento. É verdade
que a janela estava aberta e, por trás
do muro de pedra e das árvores,
a luz de um candeeiro chegava até à praia
onde não devia estar ninguém, nessa noite
de ondas e de vento.

Podia ser o tempo das férias com efeito,
era o tempo em que se tinha férias
sem se saber bem qual a distinção entre o tempo de férias
e o outro tempo. O que se sabia, por outro lado, era
se estava alguém na praia ou não e, de noite,
ninguém devia estar na praia, embora o vento trouxesse
um ruído de conversas que se confundia com o barulho
do vento.

Nuno Júdice