Seja bem-vindo. Hoje é

5 de dez. de 2013

''Amor ''


 
Busque Amor novas artes, novo engenho,
Pera matar - me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar - me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.


Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.


Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal que mata e não se vê;


Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doi não sei por quê...

Luís Vaz de Camões
de 'Obras completas'

30 de out. de 2013

Vivi, olhei, li, senti..


“Vivi, olhei, li, senti...
Terás então de ler de outra maneira,
Como, Não serve a mesma para todos,
cada um inventa a sua, a que lhe for própria,
há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir
mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem
que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a
corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar
à outra margem, a outra margem é que importa,
A não ser, A não ser , quê, A não ser que esses rios não tenham
duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela,
a sua própria margem,e que seja sua, e apenas sua,
a margem a que terá de chegar.”

José Saramago,
in A Caverna

Mesmo que...


"Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela,
nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo."

José Saramago

É TÃO FUNDO O SILÊNCIO


 É TÃO FUNDO O SILÊNCIO

    É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
    Nem o som da palavra se propaga,
    Nem o canto das aves milagrosas.
    Mas lá, entre as estrelas, onde somos
    Um astro recriado, é que se ouve
    O íntimo rumor que abre as rosas.

    José Saramago

Aprendamos o Rito



Aprendamos o Rito

Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago
In Os Poemas Possíveis

Água que à Água Torna

Água que à Água Torna

Água que à água torna, de luz franjada,
Abre-se a vaga em espuma.
Movimento perpétuo, arco perfeito,
Que se ergue, retomba e reflui.
Onda do mar que o mesmo mar sustenta,
Amor que de si próprio se alimenta.

José Saramago

PARÁBOLA

PARÁBOLA

Num caroço de mentira
Trouxe a verdade escondida
Pus o caroço na terra
Nasceu verdade fingida

Não faltou água dos olhos
Ao viço desta palmeira
Que frutos daria o ramo
Da maligna sementeira

Se do sal que nela morde
Um sabor amargo sobra
É coisa que vai no rasto
Que ficou depois da cobra

Lá em cima onde a verdade
Tem a franqueza do vento
Negam ninhos as raízes
Porque é outro o seu sustento

E o tronco tão levantado
Sobre o caroço partido
Não é tronco mas é homem
Alto firme e decidido


José Saramago
In Provavelmente Alegria

24 de out. de 2013

''MADRUGADA''


Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar conosco mortos o desejo
e o senso de existir que penetrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão de ser verdes como a velha esperança
nos prados de amargura já floridos.

Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá da álgida ausência.
Levar conosco em ossos que resistam
não sabemos o quê de paz tranquila.

E ao lume de águas o rancor da vida.


Jorge de Sena,
In ‘Versos e Alguma Prosa'


[Arte by MoonyKhoa Le]

21 de out. de 2013

RELAÇÃO DE CASAS BOAS E MÁS PARA JUÍZO DOS ARQUITECTOS CARLOS LOUREIRO E PÁDUA RAMOS




Há casas
cuja beleza começa no projecto;
outras, e são talvez as mais belas,
existem só na cabeça do arquitecto.

Há casas feitas à medida do homem,
outras há para andar de bicicleta;
há casas sobre cascatas
onde ao sortilégio da água
se junta a música de Bach.

Há casas tão ajustadas
como fato por medida
ou um verso de Cesário,
outras de tão confusas
não viram regra nem esquadro.

Há casas de papel, casas de madeira,
casas de palha e de barro;
casas que trepam pelo céu,
casas que cheiram a jasmim do Cabo;
há casas só para dormir
parecidas com um sudário.

Há casas onde
habitar é o começo da morte;
há casas de pátios caiados
com varandas para o mar;
casas onde apetece estar sentado
com um gato nos joelhos
e o coração apaziguado.

Há casas com recantos para amar,
há outras onde o amor
se faz em cinco minutos,
e às vezes já é demais;
há casas como um dedal
e geometria de abelhas,
casas de perfil atento
ao rumor de nascentes e de estrelas.

Há casas como um cristal,
casas de luz circular,
casas onde não é possível
ouvir correr o silêncio; há casas
que de casas só têm o nome;
há casas que nem para cães.

Há casas tão inteligentes
que não consentem qualquer margem
para luxos e arrebiques,
casas onde a alegria se instala
sem tempo nenhum para a mágoa.

Há casas onde o pão é triste
e a roupa mal lavada;
há casas que são um rio, há casas
que são um barco;
outras têm pomares
onde os diospiros ardem;
há casas com terras de vinha e trigo
e muros a toda a roda.

Há casas que são um poema
para dar a um amigo.


(Eugénio de Andrade)

"Em louvor ao fogo"




Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta
doçura da tarde.


Eugénio de Andrade
in Obscuro Domínio

É Natal





É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia


Eugénio de Andrade,
in: Rente ao Dizer

‘Tu és a eperança’




Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem
fundo, como quem bebe a madrugada.


Eugénio de Andrade,
In: 'As Mãos e os Frutos'

‘Pequena Elegia de Domingo’



O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.


Eugénio de Andrade, 
«As Mãos e os Frutos» in
Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, 2.ª ed.

Rosa do mundo



Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.

Primeiro orvalho sobre o rosto.
Que foi pétala
a pétala lenço de soluços.

Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.

Quase nada.


Eugénio de Andrade



Sul



Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente
o silêncio sacudiu as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
Assim: explodir no ar.


Eugénio de Andrade

ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS PARA CHE GUEVARA




Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes em prado procuram
O potro mais livre, a palmeira
mais alta sobre o lago, o barco talvez
Ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé;
cada palavra tua
faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.


Eugénio de Andrade 
in: Homenagens e outros Epitáfios 





Quando em silêncio passas entre as folhas



Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.


Eugénio de Andrade
in: As Mãos e os Frutos (1948)


'Música no ar'




"É a música.
De algum lado virá, é impossível que
não venha do avesso da morte;
com esse cheiro a resina deve ter
atravessado os lúcidos bosques do
verão, acolhido, nas suas pausas,
o ardor das colinas nevadas.
É a música.
Procura-me. Terna, violenta,
leva-me nas suas águas.
Fundas. Frescas."


Eugénio de Andrade,
in As Colinas Nevadas

Outra vez o pátio vidrado da manhã.



Outra vez o pátio vidrado da manhã.
Vais surgir e dizer: eu vi um barco.
Era quando aos lábios me chegava
a porosa argila doutros lábios.
Estava então a caminho de ser ave.

Eugénio de Andrade




O PASTOR



Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?

Vou àquela serra
buscar uma ovelha.

Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?

Não tenho ninguém
que me queira bem.

Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.


Eugénio de Andrade


Despedida



Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.


Eugénio de Andrade

Passeio alegre



Chegaram tarde à minha vida 
as palmeiras. Em Marraquexe vi uma 
que Ulisses teria comparado 
a Nausica, mas só 
no jardim do Passeio Alegre 
comecei a amá-las. São altas 
como os marinheiros de Homero. 
Diante do mar desafiam os ventos 
vindos do norte e do sul, 
do leste e do oeste, 
para as dobrar pela cintura. 
Invulneráveis — assim nuas.

Eugénio de Andrade


Um rio te espera




Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.

Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.

Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe 
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.

Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.

Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.


Eugénio de Andrade








Balança



No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.


Eugénio de Andrade


SUL




Era por agosto, há muitos anos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol oblíquo lhe caía em cima.
Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.
Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra. 
Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.

Eugénio de Andrade





Canção breve



Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.


Eugénio de Andrade

A Paixão



Levanto a custo os olhos da página; 
ardem; 
ardem cegos de tanta neve. 
Faz dó esta paixão pelo silêncio, 
pelo sussurro do silêncio, 
pelo ardor 
do silêncio que só os dedos adivinham. 
Cegos, também. 


Eugénio de Andrade




Os Animais



Vejo ao longe os meus dóceis animais. 
São altos e as suas crinas ardem. 
Correm à procura duma fonte, 
a púrpura farejam entre juncos quebrados. 

A própria sombra bebem devagar. 
De vez em quando erguem a cabeça. 
Olham de perfil, quase felizes 
de ser tão leve o ar. 

Encostam o focinho perto dos teus flancos, 
onde a erva do corpo é mais confusa, 
e como quem se aquece ao sol 
respiram lentamente, apaziguados. 

Eugénio de Andrade



Março voltou



Março voltou, esta 
ácida loucura de pássaros 
está outra vez à nossa porta, 
o ar 

de vidro vai direito ao coração. 
Também elas cantam, as montanhas: 
somente nenhum de nós 
as ouve, distraídos 

com o monótono silabar do vento 
ou doutros peregrinos. 
Já sabeis como temos ainda restos 
de pudor. 

e pelo mundo 
uma enorme, enorme indiferença. 


Eugénio de Andrade







Não, não encontro o retrato.



Não, não encontro o retrato. 
Estavas de perfil, a luz de cinza 
caía-te dos braços, 
da casa próxima o fumo 

subia devagar os últimos degraus 
do outono, um cachorro 
saltava no terreiro, não tardaria 
a escurecer. 

Estavas de perfil, a mão acompanhando 
no regaço a rosa que te dei. 
Deixa-a ficar e ser, 
a mão, rosa também. 


Eugénio de Andrade


Donde vêm?




Donde vêm? 
De que rosto, de que estrela? 

Apenas uma arde no vento. 
As outras, fico a ouvi-las 
escorrer da pedra. 

Apenas uma em silêncio brilha. 
As outras mordem 
um coração de homem. 

Só prometido à terra. 


Eugénio de Andrade







Na luz a prumo



Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção 
da água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.


Eugénio de Andrade





O desejo



O desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta - o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

Eugénio de Andrade

UM NOME



Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito,
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte,
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece,
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente,
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!

Eugénio de Andrade


A Sílaba



Toda a manhã procurei uma sílaba. 
É pouca coisa, é certo:uma vogal, 
uma consoante,quase nada. 
Mas faz-me falta. Só eu sei 
a falta que me faz. 
Por isso a procurava com obstinação. 
Só ela me podia defender 
do frio de janeiro,da estiagem 
do verão.Uma sílaba. 
Uma única sílaba. 
A salvação. 


Eugénio de Andrade





Não sei



Não sei porque diabo escolheste 
janeiro para morrer: a terra 
está tão fria. 
É muito tarde para as lentas 
narrativas do coração, 
o vento continua 
a tarefa das folhas: 
cobre o chão de esquecimento. 
Eu sei:tu querias durar. 
Pelo menos durar tanto como o tronco 
da oliveira que teu avô 
tinha no quintal.Paciência, 
querido,também Mozart morreu. 
Só a morte é imortal. 

Eugénio de Andrade





O amigo



Não voltará - o que dele me ficou 
é como no inverno entre cortinas 
de chuva um tímido fio de sol: 
ilumina mas não aquece as mãos. 


Eugénio de Andrade

Há dias




Há dias em que julgamos 
que todo o lixo do mundo 
nos cai em cima 
depois ao chegarmos à varanda avistamos 
as crianças correndo no molhe 
enquanto cantam 
não lhes sei o nome 
uma ou outra parece-se comigo 
quero eu dizer : 
com o que fui 
quando cheguei a ser luminosa 
presença da graça 
ou da alegria 
um sorriso abre-se então 
num verão antigo 
e dura 
dura ainda. 


Eugénio de Andrade


20 de out. de 2013

Eugénio de Andrade



Shelley sem anjos e sem pureza, 
aqui estou à tua espera nesta praça, 
onde não há pombos mansos mas tristeza 
e uma fonte por onde a água já não passa. 

Das árvores não te falo pois estão nuas; 
das casas não vale a pena porque estão 
gastas pelo relógio e pelas luas 
e pelos olhos de quem espera em vão. 

De mim podia falar-te,mas não sei 
que dizer-te desta história de maneira 
que te pareça natural a minha voz. 

Só sei que passo aqui a tarde inteira 
tecendo estes versos e a noite 
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós 

Eugénio de Andrade



Que diremos ainda?




Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos, 
e cada um de nós se volta e fixa 
os olhos um no outro, 
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.

Que diremos ainda? Serão palavras, 
isto que aflora aos lábios? 
Palavras?,este rumor tão leve 
que ouvimos o dia desprender-se? 
Palavras,ou luz ainda?

Palavras,não.Quem as sabia? 
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria,apenas outro olhar. 

Eugénio de Andrade



Cristalizações




1. 
Com palavras amo. 

2. 
Inclina-te como a rosa 
só quando o vento passe. 

3. 
Despe-te 
como o orvalho 
na concha da manhã. 

4. 
Ama 
como o rio sobe os últimos degraus 
ao encontro do seu leito. 

5. 
Como podemos florir 
ao peso de tanta luz? 

6. 
Estou de passagem: ama o efémero. 

7.
Onde espero morrer 
será amanhã ainda? 


Eugénio de Andrade







Casa na chuva



A chuva,outra vez a chuva sobre as oliveiras. 
Não sei por que voltou esta tarde 
se minha mãe já se foi embora, 
já não vem à varanda para a ver cair, 
já não levanta os olhos da costura 
para perguntar:Ouves? 
Oiço,mãe,é outra vez a chuva, 
a chuva sobre o teu rosto. 

Eugénio de Andrade








Desde a aurora



Como um sol de polpa escura 
para levar à boca, 
eis as mãos: 
procuram-te desde o chão, 

entre os veios do sono 
e da memória procuram-te: 
à vertigem do ar 
abrem as portas: 

vai entrar o vento ou o violento 
aroma de uma candeia, 
e subitamente a ferida 
recomeça a sangrar: 

é tempo de colher: a noite 
iluminou-se bago a bago:vais surgir 
para beber de um trago 
como um grito contra o muro. 

Sou eu, desde a aurora, 
Eu - a terra-que te procuro. 

Eugénio de Andrade





Três ou quatro sílabas




Neste país 
onde se morre de coração inacabado 
deixarei apenas três ou quatro sílabas 
de cal viva junto à água. 

É só o que me resta 
e o bosque inocente do teu peito 
meu tresloucado e doce e frágil 
pássaro das areias apagadas 

Que estranho ofício o meu 
procurar rente ao chão 
uma folha entre a poeira e o sono 
húmida ainda do primeiro sol. 


Eugénio de Andrade

II




O muro é branco 
e bruscamente 
sobre o branco do muro cai a noite. 

Há uma cavalo próximo do silêncio, 
uma pedra fria sobre a boca, 
pedra cega de sono. 

Amar-te-ia se viesses agora 
ou inclinasses 
o teu rosto sobre o meu tão puro 
e tão perdido, 
ó vida. 

III 

Havia 
uma palavra 
no escuro. 
Minúscula.Ignorada. 

Martelava no escuro. 
Martelava 
no chão da água. 

Do fundo do tempo, 
martelava. 
contra o muro. 

Uma palavra. 
No escuro. 
Que me chamava. 

Eugénio de Andrade








Oiço correr a noite...



Oiço correr a noite pelos sulcos 
do rosto-dir-se-ia que me chama, 
que subitamente me acaricia, 
a mim,que nem sequer sei ainda 
como juntar as sílabas do silêncio 
e sobre elas adormecer. 


Eugénio de Andrade




Ignoro o que seja a flor da água ...




Ignoro o que seja a flor da água 
mas conheço o seu aroma: 
depois das primeiras chuvas 
sobe ao terraço, 

entra nu pela varanda, 
o corpo inda molhado 
procura o nosso corpo e começa a tremer: 
então é como se na sua boca 

um resto de imortalidade 
nos fosse dado a beber, 
e toda a música da terra, 
toda a música do céu fosse nossa, 

até ao fim do mundo, 
até amanhecer. 


Eugénio de Andrade







Mulheres de preto




Há muito que são velhas, vestidas 
de preto até à alma. 
Contra o muro 
defendem-se do sol de pedra; 
ao lume 
furtam-se ao frio do mundo. 
Ainda têm nome?Ninguém 
pergunta,ninguém responde. 
A língua,pedra também. 


Eugénio de Andrade

DA MINHA SOLIDÃO



Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.  '
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.


Eugênio de Andrade







Sê paciente; espera



Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça. 

Hoje roubei todas as rosas dos jardins

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias. 

À breve, azul cantilena

À breve, azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem. 

Vê como o verão

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro


Eugénio de Andrade


METAMORFOSES DA CASA



Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

A casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.

Como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco.

Uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste: também voa.

Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.


Eugênio de Andrade





POST SCRIPTUM



Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa
dum desejo confuso de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
- como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.


Eugénio de Andrade