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11 de nov. de 2012

''QUANDO VOLTEI ENCONTREI OS MEUS PASSOS''







Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a úmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
- Tão rediviva!, nos meus olhos baços...


Olhos turvos de lágrimas contidas.
- Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista - para quê?
Se há-de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa...

Camilo Pessanha
In: 'Clepsidra'

16 de out. de 2012

''LÁ EM BAIXO É A FONTE''


Muitas vezes é o sono que me tem desperto.
Entram aqui, drenadas pela fadiga, vozes
sem rosto, o perfil agudo de um pífaro
esboçando, no ar, avulsas melodias.
Lá em baixo é a fonte, a matriz, o berço
onde nascem e morrem os lúbricos gladíolos.
Hoje, a noite é uma açucena, cheira a trevo
e a rosmaninho.
Boca silvestre.
Sorriso adúltero.

Albano Martins
de 'Assim São as Algas'

''MEU NOME É ESTA CANÇÃO''





Sou uma criança perdida
na imaginação dum bosque.
O vento solta-me o coração,
mas prende-me os braços e o tronco
e nunca mudo de posição.

Os espanejadores do medo
levantam o pó das lágrimas.
O tempo empoeira-se de lendas
e a água da vida vai-se congelando,
enquanto os sonhos ressonam
e eu vou crescendo e minguando.

Queimem o bosque e procurem
o dicionário dos meus anos.
Não sei que idade tenho,
perdi a imaginação
e deixei a memória em casa.
Meu nome é esta canção.


Albano Martins
de «Outros Poemas», 1951/52;
«Vocação do Silêncio»

15 de set. de 2012

'ESPERANÇA'



Canto.
Mas o meu canto é triste.
Não sou capaz de nenhum outro, agora.
Em cada verso chora
Uma ilusão,
Tolhida na amplidão
Que lhe sonhei...
Felizmente que sei
Cantar sem pressa.
Que sei recomeçar...
Que sei que há uma promessa
No ato de cantar...

Miguel Torga
In: Antologia Poética

'JUSTIFICAÇÃO'



Monótono cantor à porta do destino,
Tenho a desculpa da monotonia
Do sofrimento humano.
Dói-me, e a dor não varia:
É um inverno que dura todo o ano...

Miguel Torga
In: Antologia Poética

27 de ago. de 2012

''REMINISCÊNCIA''


Prossegue o pesadelo.
Feliz o tempo, que não tem memória!
E só dos homens esta outra vida
Da recordação.
E tão inúteis certas agonias
Que o passado destila no presente!
Tão inúteis os dias
Que o espírito refaz e o corpo já na sente!

Continua a lembrança dolorosa
Nas cicatrizes.
Troncos cortados que não brotam mais
E permanecem verdes, vegetais,
No silencio profundo das raízes.

Miguel Torga
In: Antologia Poética

10 de jul. de 2012

''Memórias de Dulcineia'' XI

Com as árvores e com as águas
partilho os meus pensamentos.
Manuseio estas palavras
como se fossem minhas
para as usar como protesto,
como absolvição: a boca
devorando a própria fome.
Aguardo um sinal que decifre
o nomadismo da memória
e rompa a cumplicidade do tempo.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

''Memórias de Dulcineia'' XIII

Sem medo do perfil
em que me invento
procuro os ângulos
menos sombrios
do passado.
Viro os gestos do avesso.
Deturpo conceitos e preconceitos.
Esqueço os comportamentos comuns.
Imagino-me num castelo longínquo,
cativa e princesa.
Não quero adiar o destino
de me rever nos sonhos
que te chamaram de tão longe.
Eu, aqui, morrendo aos poucos,
sitiada do teu nome.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

(Imagem; Eilean Donan Castle, Loch Duich Scotland)

28 de jun. de 2012

DEIXEM-ME DORMIR

(Painting by Emile Vernon)


Deixem-me dormir
deixem-me a paz do sonho

o deslumbramento
da luz que sopra ainda
nos meus olhos a criança
do brinquedo
em minhas mãos

o alento de ver sorrir a madrugada
que não volta
à paz do sono da criança
que ainda sou.

Vieira Calado

29 de mai. de 2012

'NADA E TUDO'


Nada e tudo são ao mesmo tempo
Igual mundo fechado e aberto
Quando um se põe a descoberto
Logo outro se opõe ao seu intento

Nada é assim, do tudo, um pouco
Que se sente vazio nesse tudo
Calando-se a alma no corpo mudo
E o universo nesse ser louco

Acenda-se a luz no breu intenso
Que o sonho vai alto mas já sem rumo
Olhos fechados no longe imenso

Sempre que se vê a porta trancada
O nada é tudo, denso de fumo
No tempo perdido que só foi nada.

Paulo Filipe

Paulo Duarte Filipe nasceu em 3 de Setembro de 1962, em Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, Portugal. Com poucos meses de vida, foi levado pelos seus pais para África, Angola. Cresceu aí até aos 12 anos, idade com que ganhou seu primeiro prêmio de desenho. Regressa a Portugal pouco depois. Considera-se, claramente, mais africano do que europeu. Fixa residência em Faro. Já viveu na ilha Terceira, Açores e em Londres onde realizou inúmeras exposições. Escreve regularmente para revistas e rádio. Tem diversos livros escritos que, a seu tempo, serão editados. A sua iniciação ao surrealismo deu-se por volta dos 14 anos. No entanto, feita essa aprendizagem, tentou seguir um caminho literário que lhe permite-se permanentemente recriar-se. O seu estilo peculiar de escrita é facilmente identificável pela originalidade da forma gráfica e pela total ausência de quaisquer regras ou conceitos estereotipados. Criar, para ele, é sobretudo um acto intuitivo de pura expansão/interiorização de fluidos cósmicos, da essência da loucura.

-Excerto de Tabacaria-


Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho.
Já tinha envelhecido.

Álvaro de Campos
in "Tabacaria"
Heterônimo de Fernando Pessoa

4 de mai. de 2012

''GRANDEZA DO HOMEM''



Somos a grande ilha do silêncio de deus
Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão de passar das margens
Caia mesmo uma bota cardada
no grande reduto de deus e não conseguirá
desvanecer a primitiva pegada
É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem

Ruy Belo

EFEITOS SECUNDÁRIOS


É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
o outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes

Rente às árvores vamos, húmidos humildes
Dizem que é outono. Mas que época do ano
toca nestas paredes que roçamos
como gente que vai à sua vida
e não avista o mar, afinal símbolo de quanto quer,
ó Deus, ó mais redonda boca para os nomes das coisas
para o nome do homem ou o homem do homem?

Banho lustral de ausência é este tempo
de pés postos na terra em puro esquecimento

E vamo-nos perdendo de nós mesmos, vamos
dispersos em bocados, vítimas do vento
ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos
Nada mais do que terra há quem ao corpo nos prometa
Quem somos? Que dizemos?
Reúna-nos um dia o toque da trombeta


Ruy Belo
(Portugal

12 de mar. de 2012

"Não Pode Tirar-me as Esperanças"


Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e dói não sei porquê.

Luís Vaz de Camões,
 in "Sonetos"

(Formatação enviada pela amiga Lucia Cristina Borini Simoes.)

11 de mar. de 2012

"O nevoeiro da espera colado nos sonhos"


Desenrola-se em nossos olhos
a vertigem transparente
que agride o declínio do dia
quando a lua se encosta nos vidros
e temos o nevoeiro da espera colado nos sonhos.
Há muito que sabemos como é intocável a luz
do orvalho na raiz da mágoa.
Palavras em estilhaços flutuam sobre os móveis
como fantasmas ou como as fadas
da mais antiga infância.
Respiramos devagar o sopro errante do vento.

Graça Pires

7 de fev. de 2012

DA VOZ DAS COISAS


Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão

XIV


Deixa ficar a cinza nos cinzeiros
e as flores murchas nas jarras.
Não dês ordem às coisas.
A cinza ainda é resto de presença
e as flores recordação.


Maria Eugénia Cunhal
in ‘O Silêncio de Vidro’ (1962)

3 de fev. de 2012

"EFEMÉRIDES"

(Ben Goossens)


Há como que
uma nudez desabitada
em cada palavra
chicotada na raiva
duma rosa descolorida.

Como uma bandeira
teimosamente adejando
lâminas passionais,

nódoas de sangue
manchando o cristal
de outros momentos.

Tantas palavras por dizer!
Tantos sonhos por viver!

Tanto gesto expontâneo
aprisionado,
nas grades douradas
da distância.

Tanta ânsia
desfeita pelo tempo
dum efémero tempo de ser.

Tanto para dar!
Tanto para receber!

Tanto fogo! tanto lume
no sibilino gume
em que morremos.

luizacaetano

DO LADO DE FORA DA VIDA


Sou a raiva e a descrença
não batam à minha porta!

sou a criança e o sonho!
a vontade e a garra!
a saudade e a farsa!

Não!
hoje eu não abro a porta!

Poço de contradições
que nem eu própria desvendo
nesta sinceridade inteira

Pairo no limiar das dúvidas
entre a paixão e desânimo

e no entanto,
o Sol aquece o meu corpo
e o céu continua azul...

Uma tristeza me alumbra
na penumbra do crepúsculo

Não,
não batam à minha porta!

Sou a criança e o sonho
do lado de fora da vida
alguém que quer e não sabe
esgotar até à última gota
a gota que me é devida.

Luiza Caetano

"VAZIO REDONDO"

(Tela de Edvard Munch)


Há um vazio redondo
que fere o silêncio e os gritos
como escarpas estilhaçadas ...

Há um abismo redondo
na poeira dos meus passos
um precipício de mêdo
tecido na rotina dos dias...

Há um esgar de ausência
em cada noite encostado
como se esperasse
um pássaro por amanhecer...

Um cansaço de acuçenas
amarelecidas pelo tempo
sangrando as esperas na arena,

as Primaveras, subitamente feridas,
se extinguem num vazio redondo
como um grito contra o muro.

luizacaetano

"PÉTALAS"


São as pétalas no caminho ,

São os sinais e o Carinho!

É o inventar
dum novo dia

É a seiva renovada

É a força da alegria
É a ilha da magia!

É o Ser! é o Estar!

Alvorecer de novo dia

É o dar! é o Receber!

São as pedras no caminho...

São os espinhos no carinho...

É o altar das nossas preces!
É o culto da minha Cruz!

São as pétalas do Caminho!

luizacaetano

1 de fev. de 2012

'DIA DE HOJE'


Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que há por vezes súbitas demoras
Plenas como as pausas dum verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In Dia do mar, 1947

25 de jan. de 2012

Poema de quem ficou


Dia de lembrar MANUEL LOPES,
(Mindelo,Cabo Verde- 23 de Dezembro de 1907 — Lisboa, 25 de Janeiro de 2005)

"POEMA DE QUEM FICOU"

Eu não te quero mal
por esse orgulho que tu trazes;
por esse teu ar de triunfo iluminado
com que voltas…

… O mundo não é maior
que a pupila dos teus olhos:
tem a grandeza
da tua inquietação e das tuas revoltas.

… Que teu irmão que ficou
sonhou coisas maiores ainda,
mais belas que aquelas que conheceste…
Crispou as mãos à beira do mar
e teve saudades estranhas, de terras estranhas,
com bosques, com rios, com outras montanhas
– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro–

que nunca viram teus olhos
no mundo que percorreste…

Manuel Lopes

**********

Manuel António de Sousa Lopes -Foi um ficcionista, poeta e ensaísta, um dos fundadores da moderna literatura cabo-verdiana e que, com Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa, foi responsável pela criação da revista Claridade.

Manuel Lopes escrevia os seus textos em português, embora utilizasse nas suas obras expressões em crioulo cabo-verdiano. Foi um dos responsáveis por dar a conhecer ao mundo as calamidades, as secas e as mortes em São Vicente e, sobretudo, em Santo Antão.

Emigrou quanto ainda jovem tendo a sua família se fixado em 1919 em Coimbra (Portugal), onde fez os estudos liceais. Quatro anos depois, voltou a Cabo Verde como funcionário de uma companhia inglesa. Em 1936, fundou com Baltasar Lopes a revista Claridade, de que sairiam nove números. Em 1944 foi transferido para a ilha do Faial, nos Açores, onde viveu até se fixar em Lisboa, em 1959, onde passou a viver até a sua morte. Regressou apenas por duas vezes ao seu arquipélago.

Entre as suas obras mais conhecidas contam-se: Chuva Braba (romance, 1956, Prémio Fernão Mendes Pinto), O Galo que Cantou na Baía (contos, 1959, de novo Prémio Fernão Mendes Pinto) e Os Flagelados do Vento Leste (romance, 1959, Prémio Meio Milénio do Achamento de Cabo Verde). Os Flagelados do Vento Leste teve adaptação cinematográfica, dirigida por António Faria, em 1987.

Mas Manuel Lopes foi autor de outros títulos como Horas Vagas (poesia, 1934), Poemas de Quem Ficou (poesia, 1949), Temas Cabo-verdianos (ensaios, 1950), Crioulo e Outros Poemas (poesia, 1964), As Personagens de Ficção e os seus Modelos (ensaio, 1971) e Falucho Ancorado (antologia poética, 1997).

17 de jan. de 2012

CHOVE


Chove uma grossa chuva inesperada
que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
uma paz que há-de ser.
Uma gota invisível e distante
na janela, a escorrer.

Miguel Torga

TEMPO


Tempo - definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.

Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
- O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Miguel Torga

MIRADOIRO


Não sei se vês, como eu vejo,
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai anoitecer.

Miguel Torga

"FICAM AS SOMBRAS"


Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
E da alma,
E do nome,
E da terra da própria sepultura,
Fica a memória de uma criatura
Que viveu,
E sofreu,
E amou,
E cantou,
E nunca se dobrou
À dura tirania que a venceu.

Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.
E sabeis que se comem
Os frutos acres da recordação...
Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão.

Miguel Torga
In "Antologia Poética", pg. 125



Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha,
Nascimento - São Martinho de Anta, 12 de Agosto de 1907
Morte - Coimbra, 17 de Janeiro de 1995.

Filho de gente humilde do campo do concelho de Sabrosa (Alto Douro), freqüentou brevemente o seminário, e emigrou para o Brasil em 1920, com doze anos, para trabalhar na fazenda do tio, na cultura do café. O tio apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais, em Leopoldina.
Distingue-se como um aluno dotado. Em 1925 regressa a Portugal. Em 1927 é fundada a revista Presença de que é um dos colaboradores desde o início. Em 1928 entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e publica o seu primeiro livro, "Ansiedade", de poesia.
É bastante crítico da praxe e tradições acadêmicas, e chama depreciativamente "farda" à capa e batina, mas ama a cidade de Coimbra, onde viria também a exercer a sua profissão de médico a partir de 1939 e onde escreve a maioria dos seus livros.
Em 1933 concluiu a formatura em Medicina, com apoio financeiro do tio do Brasil. Exerceu no início nas terras agrestes trasmontanas, de onde era originário e que são pano de fundo da maior parte da sua obra. A obra de Torga tem um caráter humanista: criado nas serras transmontanas, entre os trabalhadores rurais, assistindo aos ciclos de perpetuação da Natureza, Torga aprendeu o valor de cada homem, como criador e propagador da vida e da Natureza: sem o homem, não haveria searas, não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem duriense, feita de socalcos nas rochas, obra magnífica de muitas gerações de trabalho humano.
Ora, estes homens e as suas obras levam Torga a revoltar-se contra a Divindade Transcendente a favor da imanência: para ele, só a humanidade seria digna de louvores, de cânticos, de admiração: (hinos aos deuses, não/os homens é que merecem/que se lhes cante a virtude/bichos que cavam no chão/atuam como parecem/sem um disfarce que os mude).

Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição onisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e enquanto ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a Natureza - mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à Natureza, como os trabalhadores rurais transmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras.
E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a Natureza mau grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver de Torga fazem do homem único ser digno de adoração. Considerado por muitos como um avarento de trato difícil e caráter duro, foge dos meios das elites pedantes, mas dá consultas médicas gratuitas a gente pobre e é referido pelo povo como um homem de bom coração e de boa conversa.
Foi o primeiro vencedor do Prêmio Camões.