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17 de out. de 2013

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As pessoas estão sentadas numa paisagem de
Dali com as sombras muito recortadas por causa de
um sol que diremos parado

Quando o sol se move acontece fora das
pinturas a nitidez é menor e a luz sabe muito menos
o seu outro lugar

Não importa que Dali tivesse sido tão mau pintor
se pintou a imagem necessária para os dias de l.993

Este dia em que as pessoas estão sentadas na
paisagem entre dois prumos de madeira que foram
uma porta sem paredes para cima e para os lados

Não há portanto casa nem sequer a porta que
poderia não abrir precisamente por não haver para
onde abrir

Apenas o vazio da porta e não a porta

As pessoas não se sabe quantas foram contadas
devem ser ao menos duas porque conversam
levantam as golas dos casacos para se defenderem
do frio

E dizem que o inverno do ano passado foi muito
mais doce ou suave ou benigno embora a palavra
seja antiga em l.993

Enquanto falam e dizem coisas importantes
como esta

Uma das pessoas vai riscando no chão uns traços
enigmáticos que tanto podem ser um retrato
como uma declaração de amor ou a palavra que faltasse
inventar

Vê-se agora que o sol afinal não estava parado e
portanto a paisagem é muito menos daliniana do que
ficou dito na primeira linha

E uma sombra estreita w comprida que é talvez
de uma pedra aguda espetada no chão ou de um
prumo distante de porta que já perdeu companhia e
por isso não atrai as pessoas

Uma sombra estreita e comprida toca no dedo
que risca a poeira do chão e começa a devorá-lo

Devagar passando aos ossos do metacarpo e depois
subindo pelo braço devorando

Enquanto algumas pessoas continuam a conversar

E esta se cala porque tudo isto acontece sem dor
e enquanto a noite desce


José Saramago
in ‘O Ano 1993’

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