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17 de out. de 2013

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Podia ter acontecido a qualquer hora do dia

Quando debaixo do sol a horda se deslocasse na
rasa e dura planície

Ou quando à sombra de uma rocha alta acredi-
tasse no fim dos males do mundo só porque ali uma
frescura passageira os tornava distantes

Ou quando a penumbra miserável fizesse apete-
cer uma lenta dissolução no espaço

Mas foi de noite na negrura aflita da caverna lá
onde só o olho vermelho das brasas tinha pena dos
homens

E onde o cheiro dos corpos humilhados de gases
de suor de descargas de sémen

E onde intermináveis insónias se resolviam em
suicídios

Que subitamente um homem descobriu que não
sabia ler

Em vão recordava as letras em vão as desenhava
ele próprio na memória

Eram riscos cegos na escuridão desenhos de
Marte Mercúrio ou Plutão ou ainda a escrita do sis-
tema planetário da Betelgeuse

Nada que fosse humano e fraterno nada que ti-
vesse o gosto comum do pão e do sal

Quando o sol nasceu e a horda saiu para o ar
livre e para o mundo aprisionado

O homem sentou-se no chão dobrado como um
feto

E prometeu morrer sem resistência se a lepra
que lhe nascera durante a noite não fosse nunca des-
coberta pelos companheiros que talvez ainda soubes-
sem ler

José Saramago
in ‘O Ano 1993’

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